terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Ultra Trilhos dos Abutres - 31 Janeiro 2015

DNF...

Pela primeira vez não terminei uma prova que tinha iniciado. DNF, não por decisão ou lesão, mas porque não consegui cumprir, ao 30ºkm, o tempo de passagem intransigentemente respeitado pela organização. Esta foi uma prova indescritível. Todos os relatos e vídeos que li e vi não me prepararam para aquilo que vivi em Miranda do Corvo. Trail brutal, extreme em condições atmosféricas difíceis que várias vezes me fizeram duvidar da minha sanidade mental em voluntariamente ter-me colocado na linha de partida. Mas, acima de tudo, foi uma aventura inesquecível na companhia de malta fantástica. Posso não ter trazido o sapatinho para casa, mas trouxe uma história e uma mão cheia de novos amigos.
Adoro esta foto! Tudo animado e cheios de vontade de atacar os Abutres!
Toda esta aventura foi em grande parte uma novidade para mim. Começando logo com a logística. Com o início da prova marcado paras as 8h, sair no dia de Oeiras obrigaria a uma viagem demasiado "matinal", mesmo para os meus padrões. Deste modo decidi juntar-me a mais malta que habitualmente treina em Monsanto e fomos de véspera para mais uma estreia para mim, dormir no solo duro.

Mal chegámos a Miranda do Corvo fomos logo tratar do mais importante, jantar. Porque afinal de contas era preciso muita energia para enfrentar os Abutres. E o que mais se poderia comer na "Capital da Chanfana"? Foi um grande convívio onde juntámos uma mesa cheia de gente impecável. Mas, como em todo o fim de semana, o tempo corria e o secretariado fechava às 24h e não queríamos ficar "barrados".

Afinal chegámos bem a tempo e depois de uma verificação minuciosa ao meu CC lá me entregaram o dorsal e o saco das lembranças com a tshirt e um buff da prova. E não é que era mesmo um buff da Buff! Ainda deu tempo de passear brevemente pela feira e depois era hora da deita.
Montagem da "camarata" C14B.
Depois de tanta conversa sobre o solo duro, tal como para a prova, ia preparado para o pior. Ele era tampões para os ouvidos, leitor de MP3... Afinal foi super pacifico. O solo duro era nas salas de aula da escola básica ao lado do pavilhão. Devido à nossa chegada tardia foram necessárias algumas tentativas mas lá encontrámos uma sala vazia que se transformou na nossa camarata. A noite até nem se passou mal, tirando o facto de ter que me virar de 30 em 30 minutos porque ficava dormente. Cada vez que acordava ouvia a tempestade que se abatia lá fora.

Dormir com malta que habitualmente começa a treinar às 5:30 é lixado e às 6h já estava tudo levantado. A meio do nosso pequeno almoço recebemos a noticia do adiamento da prova para as 10h devido às condições meteorológicas. Agora já não havia nada a fazer e depois de arrumar o "quarto" fomos ansiosamente matar o tempo. O pavilhão fervia de actividade e os rumores eram mais que muitos: a prova ia ser cancelada, estavam à espera que os caudais baixassem, iam encurtar a ultra... E lá fora chovia copiosamente.
Já com a lição bem estudada afinavam-se as estratégias!
Poucos depois das 8h é anunciado que a prova irá mesmo começar às 10h e que os atletas podem começar a realizar o controlo 0. É ainda comunicado que se mantêm os 50km e será efectuado um briefing final antes do início da prova. Entretanto ficámos a saber que a 2ª metade do percurso fora alterado para evitar a passagem de um rio.
Ainda com o material na mão após o rigoroso controlo 0.
O pavilhão fervilhava de expectativa e após o mais rigoroso controle zero que já fiz lá nos preparamos para a partida. Nesta fase encontro muitas caras conhecidas e após um "Boa Prova" lá seguimos para a rua para iniciar a nossa aventura. E não é que está um céu limpo e um Sol radioso! Considero seriamente em tirar o impermeável. Cinco minutos antes das 10h, um elemento da organização faz o briefing, na linha da partida em voz, para 600 pessoas... Bem pode ter dito coisas super importantes como por exemplo que iam ser implacáveis com os tempos de passagem limite, mas eu, e praticamente todos os que estavam a mais de 5m do elemento da organização, não ouvimos nada...
Tudo a postos!
De forma quase implícita, quatro de nós, decidimos que iríamos tentar fazer a prova juntos, se bem que o elo mais fraco desta cadeia era "moi meme". Finalmente são 10h e o Miguel, o Pedro, o Serradas e eu começamos a nossa prova(ção). Os km's iniciais são feitos pelas ruas de Miranda. Primeiro por ruas largas de alcatrão e depois progressivamente por ruelas mais estreitas em empedrado. Prosseguimos por estrada quase 5km e chego a comentar que já tinha feito provas de estrada mais curtas... Mas pelo menos deu para esticar bem o pelotão e a verdade é que acabei por, em toda a prova, não ter grandes congestionamentos.

Antes de sairmos da vila passamos por um parque urbano circundado por um ribeiro que agora parece um rio de águas bravas. O parque está transformado num enorme lago onde só é possível ver o topo dos equipamentos infantis. Desde logo um "bom" prenuncio do que nos espera...
Em alcatrão até pareço um atleta!
A entrada em trilhos é feita de forma muito progressiva, primeiro por um estradão com algumas poças que progressivamente se ia afunilando e tornado num barranco de lama. Começam a aparecer as primeiras subidas mas ainda perfeitamente corriveis. Ultrapassamos inúmeros atletas que optam por começar desde logo a andar. Começo a sentir calor e dispo o impermeável.

Mas ao 7km embrenhamo-nos completamente na Serra da Lousã e em todas as dificuldades que 3 dias de chuva intensa lhe adicionaram. Os trilhos transformaram-se em autênticos ringues de lama que a trupe de atletas da frente ajudou a transformar numa papa viscosa. Por mais de uma vez sinto a sapatilha a querer sair do pé e tenho de começar a fazer ganchinho para não a perder. Seguimos junto a um ribeiro que atravessamos inúmeras vezes. Saltos e mais saltos que as pernas frescas ainda permitem. Acabou por ser um óptimo momento didáctico e acho que aperfeiçoei a minha técnica de saltos. Embora com dificuldade conseguimos manter um ritmo aceitável fruto do pouco desnível. Mas também isso é algo que pouco dura e ao 10km começamos a primeira subida.

Nos 3km seguintes, a acumular às dificuldades já referidas, começam a surgir paredes de lama que temos de escalar. Aqui vale tudo, mãos, raízes, ramos, pedras, empurrar o rabo do colega da frente, ser empurrado. O ritmo começa a baixar e baixa ainda mais quando começamos a ser ultrapassados pelos primeiros atletas da prova dos 25K. Sempre que sinto alguém nas minhas costas paro e cedo passagem.
Vamos lá equipa! E impermeável na mochila que já tinha dado para aquecer.
Chegamos a Corujeira e ao topo da primeira subida. Os escassos metros em alcatrão que fazemos na aldeia são um desanuviar para as pernas e cabeça. Passamos por uma placa que diz "Posto de Controlo" mas está deserta.

Começamos a descer, e se a subida tinha sido difícil, a descida foi surreal. Para mim sempre foram mais difíceis as descidas técnicas do que as subidas. E nestas condições estava completamente fora do meu elemento. Primeiro muito a medo, mas depois lá me fui libertando e entre escorregadelas e algum ski acabou por ser um dos segmentos mais divertidos da prova. A meio da descida a temperatura começa a baixar muito repentinamente, e após um trovão assustador começa a cair granizo. Arrependo-me de ter tirado o casaco mas, no meio da descida, não há nada a fazer a não ser levar com o gelo nas trombas e esperar que passe.

O primeiro abastecimento chega ao 14,5km (estava anunciado ao 13km) com 2h15m. Não é fantástico mas tem o que é preciso. Pego numa banana, um tomate com Sal e encho a garrafa com isotónico. Até aqui quase não bebi nenhuma da água que transporto. Ficamos muito pouco tempo mas aproveito para voltar a vestir o impermeável.

Retomamos o percurso com o ataque ao topo da Serra, e regressam os obstáculos. Trilhos e mais trilhos super técnicos. Sempre com os pés dentro de "água" e com poucas oportunidades de correr para aquecer. No meio dos meus pensamentos a descrição que me vêm à cabeça é que por comparação isto faz parecer Monsanto num dia de tempestade um citytrail...
Ilustração da definição de "trilhos corriveis" nos Abutres. 
Já na crista da Serra apanhamos com a segunda dose de granizo, mas desta vez com impermeável até acho alguma piada. O pés parecem dois tijolos e assusto-me a sério quando, após olhar para o relógio e verificar que não como nada há quase 2h, decido ingerir uma barra. As mão não me respondem e só com muita dificuldade consigo abrir o pacote. Embora não sinta frio, tenho as mãos geladas. Começo a abrir e fechar as mãos para tentar activar a circulação e embora não recupere também  não ficam piores.

Chegamos ao segundo abastecimento,Mestrinhas, com 23,5km e 4h15m (estava anunciado 22km). Aqui estava muito frio e quando chegamos vimos vários atletas embrulhados nas mantas térmicas. Nunca tinha visto tanta manta térmica. Sigo a mesma ementa do abastecimento anterior mas acrescento Coca-cola, estava precisar de algo doce e da cafeína. Um dos voluntários avisa que já foram evacuados pelo menos 10 atletas e que estão outros tantos ali à espera. Fico ainda mais assustado e apresso o pessoal para seguirmos. Mas o Serradas não está nos seus dias e diz para seguirmos porque precisa de mais alguns minutos.
Afinal também haviam trilhos "normais" e a organização colocou lá um fotografo para o comprovar!
Algo contra vontade lá seguimos e mesmo antes de atingirmos o ponto mais alto da serra começo a ver pequenos flocos de neve a cair, que se transformam em água mal tocam o solo. A visibilidade é muito baixa e embora já as ouvíssemos há algum tempo apenas quando estávamos debaixo delas é que conseguimos ver as eólicas.

Pela primeira vez olho para o relógio para fazer contas. Estamos no início da descida, com 25km e temos 4h35m de prova. Teoricamente teríamos 55m para correr 4km, a descer. Mas se a prova estava a ser muito técnica e difícil até ali, aquele km's seguintes foram completamente infernais. A descida seguia por um trilho junto às margens de uma ribeira, ora numa ora noutra, que atravessávamos por rústicos passadiços de tronco. No verão deve ser lindíssimo. Mas em Janeiro era um escorrega continuo de lama. O ribeiro seguia com uma força desmesurada arrastando tudo no seu leito com um barulho ensurdecedor. Perdi a conta às vezes que escorreguei, até porque o rabo era um apoio perfeitamente válido, assim como as mão, os cotovelos, os joelhos ou a testa...
A altimetria com os tempos limite...
Assusto-me muito a sério quando, numa curva, perco a tracção nos dois pés, caio lateralmente e vou deslizado em direcção do ribeiro. Felizmente consigo agarrar uma raiz e evitar um banho de imersão. Um pouco mais à frente, volto a escorregar, mas desta vez ao tentar recuperar o equilíbrio, estico demasiado o gémeo e tenho uma caimbra que me deixa KO durante alguns segundos. Perco o contacto com os meus companheiros mais rápidos (penso até com o filtro de sanidade levemente desajustado). Estou farto de single tracks! Quero um estradão para poder correr!

Sou ainda "salvo" por um atleta que seguia atrás de mim quando, ao sair de uma das "pontes",  me agarra pela mochila e evita que derrape margem abaixo. Obrigado! Alguns metros mais à frente é a minha vez de ajudar outro atleta a sair de dentro do ribeiro para onde escorregou numa outra "ponte". Dizem que é o espírito do trail.
Apenas mais um ribeiro...
A certa altura comecei a ouvir "Olha o copo!", jogo a mão à mochila e não sinto o meu copo. Paro e olho para trás, e quem é que lá está de copo estendido? O Serradas! Tinha recuperado e já me tinha alcançado.

Mas as maiores parvoíces perigosas de todo este segmento ainda estavam para vir. Em algumas provas de trail podemos observar quedas de água, nos Abutres temos de desce-las. O percurso descia por dentro do ribeiro umas centenas de metros, bem ao espírito do Canyoning. Nos primeiros metros ainda existia uma corda para ajudar, mas depois era à aventura. Obviamente que escorreguei e tomei um duche de água geladinha. Mas vendo bem o potencial da coisa até nem escapei mal. O mesmo não pode dizer um atleta que vi pouco depois da cascata. Estava deitado no chão embrulhado na manta térmica e já na companhia de dois ou três bombeiros.
A preparação para o duche...
Mas o "melhor" estava guardado para o fim do segmento. Um escorrega de lama com cerca de 200m. Já vi escorregas em parques infantis com menos inclinação. Lá fomos num sku controlado e muito cuidadoso. A meio do escorrega "sobe" a noticia que já fecharam o controle e que estão a barrar os atletas. Admito que nesse instante senti alivio. A frustração só chegou depois...

Chego ao posto de controle com 5h56m, 26min após o limite. A prova acabará, com 30km.

Pedem-me que entregue o Chip. Sem mais conversa ou explicação. Retiro e chip e é como se me estivessem a tirar uma parte de mim. Nunca antes tinha tido semelhantes sentimentos por uma quadradinho de plástico...

De repente estou rodeado por centenas de atletas, parece que todo o mundo ficou ali barrado. Muitas caras conhecidas de outras provas. Há muita frustração e indignação no ar com a decisão da organização de fazer cumprir rigorosamente o regulamento. Corre a história de quem tenha sido barrado por segundos e um grupo de espanhóis, especialmente sonoros, descarrega a frustração em vernáculo castelhano. Há quem queira continuar mesmo sem o chip (soube depois que houve quem o tivesse feito), mas depois lá conseguimos serenar um pouco e optar por voltar para o pavilhão. 

O mais irónico de tudo e um dos factos mais frustrantes era que eram 16h, estava Sol e ainda havia muita energia nas pernas. Podiam ter atolado o nosso ego, quebrado as nossas expectativas, privado-nos de ser "finisher" mas chegaríamos ao pavilhão de Miranda pelo nosso pé! Se não era por trilhos seria por alcatrão. Após confirmar com um bombeiro a estrada a seguir lá fomos nós fazer mais 5km e "fechar" o track. Mal começámos a correr uma dezena de outros atletas viram-nos e acompanharam-nos neste segmento final.
A caminho de Miranda sem ego chip.
Estávamos tão bem que ainda demos um voltinha extra em Miranda só para ir subir a famosa rampa final e entrar no pavilhão pela pórtico de chegada. Chegámos mesmo a tempo de ver a elite feminina a chegar e passar cabisbaixo  pela mesa com os sapatinhos "finisher".

No nosso grupo nem todos fomos barrados e ainda ficámos algum tempo à espera das máquinas! Todos os que terminaram o Abutres este ano são elite e têm todo o meu respeito! Parabéns!
E por fim a minha foto favorita: a chegada da grande equipa!
Muito obrigado aos meus companheiros, pelas fotos, pelo filme mas acima de tudo pela companhia, motivação e paciência. E deixei o melhor para o fim! O Pedro e o Miguel para além de irem sempre a puxar ainda conseguiram ter disponibilidade para filmar e tiveram a mestria de montar um video todo catita que aqui partilho.


O balanço final não é, obviamente, muito positivo. Foi sem dúvida uma grande aventura, a mais "extreme" que alguma vez fiz. Adorei os km's onde consegui efectivamente correr. Mas acho que a organização saiu muito mal na fotografia. Tinha tudo para ser uma prova irrepreensível em termos de organização, mas não é aceitável que quase metade dos atletas tenham sido barrados. Não estou a falar de pessoas inexperientes e mal preparadas, vi muitas caras bem conhecidas da modalidade na Srª da Piedade. Com a égide da "segurança" dos atletas acho que as decisões tomadas foram mais no sentido da "segurança" da organização. 

Apesar de, tal como a organização referiu, estar a chover intensamente na Serra à três dias, ficou a sensação que não havia um plano B. O adiamento em duas horas colocou uma pressão enorme nos tempos limite desde logo muito exigentes. 

Depois a alteração no percurso. Devido ao elevado caudal no rio foi necessário alterar a parte final da prova, até aqui a organização esteve muito bem. Mas em vez de encurtar, decidiu acrescentar os km's no início pelas ruas de Miranda. Foram 1,5km a mais como se verificou na distância para todos os abastecimentos. Não é que os 10min tivessem algum impacto na minha prova, mas quem foi desclassificado por segundos tinha razões para se queixar. O segmento das Mestrinhas para a Srª da Piedade nas condições em que se encontrava era demasiado perigoso, sendo que tinha dois pontos estupidamente perigosos. É verdade que estavam pessoas da organização em ambos os pontos, mas acho que eram perfeitamente evitáveis e a prova não perderia a mística sem aquelas duas descidas.

Fiquei com a sensação que a organização só pensou nas elites e no campeonato. Optou por não cancelar a prova e garantiu que a elite chegava para aparecer na TV. O resto do pelotão? Azar. Para o ano há mais e as inscrições irão esgotar ainda mais depressa.

Não resisti e fui olhar para os resultados. O primeiro atleta passou pelas Srª da Piedade com 2h59, o último, obviamente, com 5h30. Ora utilizando a "regra" do dobro do tempo do primeiro, 6h seria um tempo perfeitamente aceitável para se passar no controlo. Mais, o último atleta a chegar à meta fez-lo em 10h16, quase 3h antes do tempo limite para a prova! 

Se volto aos Abutres? Não sei. Talvez num ano de seca. Afinal temos de ser humildes e compreender que terminar os Abutres não é para quem quer. Fiquei chateado com a situação e afinal não é só nos Abutres que há Lousã...